Quo Vadis Humanidade?

07-10-2016 18:44


Cresci a ouvir que as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens. 
Cresci a ouvir que o estudo e o trabalho eram a chave para vingar no mundo competitivo que me esperava lá fora.
Cresci a ouvir que um dia, teria de abandonar as bonecas, e arriscar- me num mundo de leões. 
Cresci a ouvir que era capaz de tudo, só precisava de querer. 
Cresci a ouvir que nunca devia permitir que me inferiorizassem por ser rapariga e que tal como qualquer rapaz, era um ser humano merecedor de dignidade.
Mas cresci sabendo também que nem todas as meninas como eu ouviam o mesmo. Fruto de uma educação típica ocidental e europeia fui educada a lutar pelo que aspirava, com vontade e sem desistir. Enquanto isso, do outro lado do mundo, muitas eram as meninas educadas a submeterem-se aquilo que achavam que era o melhor para elas. Tantas eram as meninas afónicas, a quem era negado o direito de ponderar sobre a própria vida. De gritos entalados, subjugavam-se ao que era esperado delas. Algumas até consentiam de bom grado tal afronta , refugiadas no conforto da ignorância. Mesmo para se ser corajoso é preciso ser ensinado que todas as opiniões, até as mais divergentes dos padrões típicos, contam.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos declara que “ todos os seres humanos nascem livres em dignidade e em direitos”. No entanto, através das lentes irrealistas que a nossa sociedade enverga, somos uns mais humanos que outros. No fundo, são corações que batem e esqueletos que se movem mas, infelizmente, uns mais dignos que outros. Uma mulher que lute e se indigne pela dignidade que lhe é negada à nascença, para muitos, não é um ser humano, é um inconveniente.
A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos afirma que “Todas as formas de exploração e de aviltamento do homem, nomeadamente a escravatura, o tráfico de pessoas, a tortura física ou moral e as penas ou os tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes são interditas.” Ora, o que será a mutilação genital feminina se não uma violação do presente artigo? 
Entre 100 e 140 milhões de meninas e mulheres, por todo o Mundo, já foram submetidas a algum tipo de mutilação genital. Esta consiste em procedimentos que envolvam a remoção total ou parcial dos orgãos genitais externos da mulher ou que provoquem lesões nos mesmos por razões médicas.
Este flagelo é uma prática defendida e legitimada por muitos que defendem que é parte da tradição e da cultura, contudo, nem sempre tradição é parte integrante da cultura. Esta última está associada a desenvolvimento, evolução e qualidade de vida. Assim, falamos da cultura de um povo aludindo aos atos que, passando de geração em geração, conduzem à manutenção da sua identidade enquanto Pátria, mas também à sua evolução. Logo, a cultura deve ser preservada e desenvolvida. Já as tradições, devem ser respeitadas e fundamentalmente pensadas e repensadas. Devem ser mantidas aquelas que preservem e honrem a dignidade da vida humana. A mutilação genital feminina não é cultura. É uma prática nefasta que viola os direitos das mulheres e as procura subjugar, pela força e pela coação, aos homens que as abusam e exploram. Esta é uma prática sobre o qual os países ocidentais se devem fazer ouvir e devem intervir.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos garante que “ O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos.” No entanto, muitas são as crianças que dissociam o amor do casamento e o encaram como um contrato entre a sua família e a do futuro marido. Tratadas como mercadorias e muitas vezes até fardos, forçadas a casar com menos de 18 anos com homens, muitas vezes, quase 10 anos mais velhos, não têm qualquer controlo sobre a sua própria vida. Em países cujo índice de Desenvolvimento Humano e Social marca níveis baixíssimos, a taxa de casamento infantil marca os 50%, como é o caso do Malawi, chega ainda aos 65% no Bangladesh e a uns escandalosos 78% no Níger. Com grande pesar, esta é uma realidade presente entre muitos outro países, onde as mulheres, ao invés de serem olhadas com respeito e igualdade, são encaradas como objetos sexuais pelos seus maridos. Pelos que as trouxeram ao mundo, são encaradas como bens de troca que concedem um alívio na despesa familiar.
Como se não fosse suficiente, em consequência de um casamento precoce, vêm-se obrigadas a amadurecer a um ritmo desproporcional à sua idade. Privadas de ir à escola adquirir formação e sem poderem trabalhar, tornam-se financeiramente dependentes do marido e da vontade do mesmo. Esta prática nefasta coloca-as num patamar de vulnerabilidade social alarmante. Violentadas tanto a nível emocional e psicológico como físico e sexual, tendem a estar sujeitas a complicações na gravidez e no parto, assim como a diversas infeções e a doenças sexualmente transmissíveis como a Hepatite B, C e VIH/Sida. 
Contudo, há momentos em que a vontade de nos resignarmos ao que pensamos não ser possível mudar esta prestes a consumir-nos. Nessa altura, em que nos sentimos um pequeno peixinho a remar contra a maré, surge luz, esperança. Porque o medo nunca fez um marinheiro, é nos corações que batem, corajosos o suficiente para lutar pela guerra que sentimos perdida, que encontramos esperança. 
No Malawi, segundo país africano com uma chefe de estado feminina, surge uma lufada de ar fresco que nos dá alento. Em Theresa Kachindamoto, supervisora do distrito de Zomba em Malawi, vemos um incoveniente indispensável, força para se indignar pelo que deseja para o seu país e para todas as meninas que tem sobre a sua governação. Ameaçada e coagida a abandonar a política, Kachindamoto não baixou as armas, continuando de fracasso em fracasso mas não a impedindo de prosseguir na luta pela sua causa. Graças ao exímio e assíduo esforço de Theresa, o limite de maioridade para casamentos fixou-se nos 18 anos. Sendo que garantir um futuro risonho é tão importante como remediar o passado, cerca de 850 meninas, através do seu anulamento, foram salvas de casamentos forçados.
Theresa recusou a derrota e conduziu centenas de jovens à escola onde lhes tem garantido o seu direito à educação. O caminho mais estável que os rapazes, na maioria dos casos, percorrem na sua jornada para o sucesso é ainda hoje incomparável ao caminho repleto de obstáculos e alçapões com o qual as meninas africanas são confrontadas. Esta realidade é um desalento e um duro golpe nestas guerreiras mas, com orgulho, a líder do Zomba, crente no potencial e capacidade de cada uma delas, afirma que “ se elas forem educadas podem ser o que quiserem.”
A Declaração Universal do Direitos Humanos, a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos e a Declaração dos Direitos da Criança são pegadas do caminho que tem sido percorrido pela sociedade no desenvolvimento de um mundo mais instruído e respeitador. Estas iniciativas foram marcos históricos de grande importância cívica e que alteraram profundamente a visão do mundo sobre temas fraturantes como a igualdade racial e de géneros, a liberdade de expressão e o respeito e cooperação entre cidadãos. 
A UNICEF declarou que, desde 2008, mais de 15.000 comunidades e bairros em 20 países declararam publicamente que estão a abandonar a mutilação genital feminina, incluindo mais de 2.000 comunidades no ano passado. Destacam-se cinco países onde já foi aprovada legislação nacional para criminalizar a prática. A nossa civilização tem vindo a progredir nestes setores, no entanto, a taxa global de progresso não é suficiente para acompanhar o crescimento populacional que se tem verificado. Os valores previstos para o futuro ainda são gritantes. Se as actuais tendências se mantiverem, em 10 anos mais de 142 milhões de meninas tornar-se-ão noivas, sendo que até 2050 mais de 1.2 mil milhões de meninas estarão casadas.
Não deixemos que práticas como estas nos sejam indiferentes. Estas meninas são “ os outros” que também somos nós, as lágrimas marcadas e o sangue derramado escorre pelas nossas mãos. A indiferença é a culpa cobarde.

Eva Brás Pinho

Relações Internacionais

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